terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

"A alegria do Evangelho"

Exortação Apostólica do Papa Francisco,
"A alegria do Evangelho"

ENCONTRO

O documento nasce de uma reflexão sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, portanto, sobre o anúncio do Evangelho hoje. Mas o Papa destaca que tal anúncio só é possível quando surge de um encontro: “Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: ‘Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo’”. (n. 7). Esse é o “manancial da ação evangelizadora”, segundo o Papa Francisco. “Se alguém acolheu esse amor que lhe devolve o sentido da vida, como pode conter o desejo de comunicá-lo aos outros?” (n. 8).
Portanto, seja na sua origem, seja também no seu desdobrar-se, a ação evangelizadora mantém seu vigor nesse encontro: não se trata de uma “heroica tarefa pessoal”, ou seja, solitária, mas sim de uma “obra de Deus”, um anúncio que nasce e se mantém como encontro com esse grande “Outro”. “Jesus é ‘o primeiro e o maior evangelizador’. Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus” (n. 12). E Deus é sempre um “Outro” que nos surpreende, que se manifesta pela “liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas” (n. 22).
Por outro lado, o anúncio do Evangelho se faz sempre no encontro com os diversos “outros”, pois, de acordo com o papa, todo o povo de Deus anuncia o Evangelho. O papa Francisco deseja uma “Igreja ‘em saída’”, que vá ao encontro dos diversos “outros”, pois “ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus nos atrai, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe” (n. 113).
Dentro dessa trama de relações, três “outros” principais ganham seu destaque no horizonte de Francisco expresso na Evangelii gaudium. Em primeiro lugar, pobre. Diz o papa: “Hoje e sempre, ‘os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho’, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!” (n. 48). “Por isso – continua o papa, repetindo sua frase já célebre  –, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar” (n. 198). Embora nem sempre os cristãos conseguem manifestar a beleza do Evangelho, “há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e joga fora” (n. 195). E mais: “É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja” (n. 198).

DIÁLOGO

Para Francisco, o diálogo “é muito mais do que a comunicação de uma verdade. Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que mutuamente se dão no diálogo” (n. 142). Por isso, em um anúncio “respeitoso e amável” do Evangelho, o papa afirma que “o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois dessa conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra” (n. 128).
Francisco também destaca duas grandes modalidades de diálogo. Um primeiro diálogo necessário é intraeclesial. Como exemplo concreto e até mesmo litúrgico, o papa faz uma longa reflexão sobre a homilia (nn. 135-159), que é justamente uma retomada do “diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o seu povo” (n. 137). Para o papa, a pregação de todo discípulo missionário deve partir primeiramente da vivência pessoal de diálogo com o Senhor: “Quem quiser pregar, deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na sua vida concreta” (n. 150).
E também é preciso preparação, pois “um pregador que não se prepara não é ‘espiritual’: é desonesto e irresponsável quanto aos dons que recebeu” (n. 145). Essa preparação começa na escuta. A “arte de escutar (...) é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual” (n. 171). Por isso, o pregador deve pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. “Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo” (n. 154).
Outro diálogo essencial é extraeclesial, pois “o compromisso evangelizador se move por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias” (n 45). “Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura – afirma Francisco  –, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra ‘a beleza deste rosto pluriforme’” (n. 116). A cultura e os diferentes povos, portanto, como um grande interlocutor da comunidade cristã, também “são sujeitos coletivos ativos, agentes da evangelização” (n. 122).
Nesse sentido, a diversidade cultural é um dom e “não ameaça a unidade da Igreja” (n. 117), pois “uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (n. 118). Por isso, Francisco critica aqueles que “sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos”, pois a variedade “ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho” (n. 40). “A expressão da verdade pode ser multiforme”, relembra Francisco, citando João Paulo II. “Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adotadas pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão de uma cultura” (n. 118). Daí a importância da evangelização entendida como inculturação: “Pode-se dizer que ‘o povo se evangeliza continuamente a si mesmo’” (n. 122).
Em suma, Francisco quer uma Igreja “em saída”, uma Igreja com as portas abertas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as portas abertas” (n. 47), abertas aos diversos “outros” do mundo. E a verdadeira abertura, segundo o papa, é “conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas ‘disponível para compreender as do outro’ e ‘sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos’” (n. 251).

ANÚNCIO

Para além do encontro e do diálogo, os cristãos têm o dever de anunciar o Evangelho “sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas ‘por atração’” (n. 14). Por outro lado, também, “todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente” (n. 121), pois “a Igreja não evangeliza se não se deixa continuamente evangelizar” (n. 174).
E evangelizar é “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (n. 176), é “amar a Deus, que reina no mundo” (n. 180).
Nesse sentido, do ponto de vista da evangelização, afirma Francisco, “não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração” (n. 262). O anúncio do Evangelho leva ao “amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre” (n. 194), como Jesus ensinou. “Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais” (n. 180).
O anúncio, portanto, por assim dizer, deve ser encarnado, pois “as obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito”. E, com relação ao agir exterior, “a misericórdia é a maior de todas as virtudes” (n. 37).
Depois de delinear, enfim, um horizonte bastante amplo da ação evangelizadora da Igreja, o papa reconhece os limites e os riscos possíveis ao se tentar encarnar o “estilo evangelizador” (n. 18) em todas as atividades da Igreja. Mas Francisco não aceita desculpas esfarrapadas diante dos desafios da evangelização: “A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cômodo critério pastoral: ‘sempre se fez assim’” (n. 33). “A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na mediocridade e para continuar crescendo” (n. 121). “Não digamos que hoje é mais difícil. É diferente” (n. 263).
Também é preciso abandonar os sonhos com “planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados” (n. 96). O importante é tentar, é o que o papa parece dizer. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (n. 49).
E a própria história de Igreja “é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é ‘suor do nosso rosto’” (n. 96). Por isso, a ação evangelizadora, na sua tensão encontro-diálogo-anúncio, é tentativa: “O abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal” (n. 244). Entretanto, “se eu consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida” (n. 274).
No fundo, o verdadeiro sonho de Francisco é “com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal adequado para a evangelização do mundo atual mais do que à auto preservação” (n. 27). Para isso, é preciso “acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto” (n. 288), como fez Maria, “Mãe da Igreja evangelizadora”, que soube até “transformar um curral de animais na casa de Jesus” (n. 286). Mas essa força não surge por causa dos nossos esforços pessoais. Essa força vem do Espírito Santo: só ele pode “renovar, sacudir, impelir a Igreja em uma decidida saída para fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos” (n. 261).


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