O timorense depara-se com dois mundos: o cosmos, o território que habita e o espaço desconhecido que o circunda, povoado de demónios e almas de defuntos.
Estabelecer-se num local, organizá-lo e habitá-lo são actos que conferem ao primeiro um cariz de divindade, como que a criação de um mundo. Assim, a aldeia encontra-se dividida em quatro sectores, que remetem para a divisão do Universo conhecido em quatro horizontes, erguendo-se, no meio da aldeia, a casa cultural (uma lulic). Na outra extremidade, debaixo da terra, situa-se o mundo dos mortos, simbolizado pelas serpentes e crocodilos. O lugar sacralizado (uma lulic) provocou uma rotura na homogeneidade do espaço, permitindo a comunicação entre os três níveis cósmicos – Céu, Terra e regiões inferiores.
O simbolismo cósmico do mundo, expresso na aldeia e na casa de habitação, é retomado na “uma lulic”, habitada pelos espíritos dos antigos guerreiros – a casa é uma imagem do mundo, a sua cobertura é o Céu, o pilar é o “eixo do mundo” que sustenta o imenso tecto celeste e desempenha um importante papel nos rituais: é na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do ser supremo, Marômac «…Dois postes grandes e grossos (Kakaluk rai e Kakaluk lor) irrompem na grande sala e suportam, por si sós, grande parte do peso da cobertura. O kakaluk lor, símbolo do oculto da casa, é objecto de especiais atenções, no chão, perto dele, o chefe da família coloca um prato de pedra, o “lor fufuhum” e sobre a lareira, dispõe um outro, o “ lor hun”.» A casa sagrada é propriedade de toda a população e elemento de união entre o clã, se a “uma lulic” desaparecer por ruína ou incêndio, grande desgraça se abaterá sobre o povo e as famílias dispersar-se-ão. A guarda da “uma lulic” é confiada a um(a) velho(a) do clã, responsáveis por ela perante a população.
As casas sagradas, idênticas às habitações familiares, diferem das últimas pelos ornamentos e esculturas de aves em madeira, pelos lagartos, crocodilos, tokés, ou seios de mulher, esculpidos na madeira das portas, comportando uma função decorativa e um acentuado significado totémico, que denotam a dualidade do simbolismo religioso timorense.
A construção e inauguração de uma casa equivale a uma nova vida e, para que a obra seja resistente deve receber, concomitantemente, uma vida e uma alma, sendo que a transferência da última se opera através de um sacrifício sangrento. O animismo destas relações, presente em toda a vida timorense, representa a expressão de um estado de espírito que não distingue os procedimentos a ter para com as pessoas e o procedimento a seguir com “as coisas”.
Tudo o que causa receio ou é considerado importante é guardado nas “uma lulic”, como sejam uma espada, uma pedra de feitio singular, um saco de masca que foi pertença de um avô.
Tudo tem alma, as pedras, as árvores, especialmente as de grande porte, os gondões frondosos, as montanhas elevadas habitadas pelas almas dos mortos (mate-biam), as ribeiras tumultuosas, as florestas virgens, impenetráveis e sempre verdes.
Na cultura timorense subsistem, ainda, vestígios de totemismo, da exogamia e de um passado matriarcal. O totem (geralmente um animal), antepassado venerado e seu espírito protector, castiga o clã, com a destruição, quando é morto por algum dos seus comportamentos e proíbe o casamento ou relações sexuais entre membros da mesma tribo. Em muitas regiões o crocodilo (lafae), ainda, é animal sagrado, sendo chamado de avô.
A sobrevivência da cultura matriarcal refere-se ao costume de decapitar os inimigos mortos em combate, cujas cabeças são expostas na árvore lulic, atadas aos troncos com vibras de gamúti, durante as cerimónias fúnebres. Os crânios têm alma e necessidades, por isso os “açuaim” (guerreiros) lhes ofertam carne e arroz, sendo sinal de valentia comer estes alimentos sujos, assimilando a bravura dos guerreiros mortos. Como era uso na magia medieval, os feiticeiros (matan doc) lançam um feitiço de ódio ou quebranto sobre qualquer objecto que tenha pertencido à vítima. Outra função dos matam doc era defender as pessoas dos “buan” (espíritos maus) e vender remédios.
Por outro lado, nas hortas e campos de cultivo, é vulgar os agricultores colocarem aí-tós – troncos de madeira em forma antropomórfica que simbolizam os antepassados de linhagem – que assentam em socos de pedras soltas sobre os quais, antes da colheitas, se dispõem as espigas de milho ou de arroz.. Ao oferecer alimento ao espírito tutelar da plantação, o agricultor pretende obter a sua protecção para as colheitas futuras.
Existiam, ainda, os altares (foho), montes arredondados de pedra solta, encimados pelos pratos de sacrifício (fatu bui soles) onde os sacerdotes e anciãos se reuniam para examinar as entranhas dos animais e expor as oferendas de milho e arroz.
Realizam-se festas, com oferendas de arroz cozido e carne assada dos animais sacrificados, acompanhadas de dança diante da “uma-lulic”, em ocasiões como o casamento de régulos, o regresso da guerra, ou aquando das colheitas. Mas a prática mais significativa, ainda, é o funeral (acoi-mate), em que toda a família do defunto se reúne, contribuindo com alimentos, e inicia-se um grande banquete, que é repetido um ano depois, comemorando o desluto (koro metan). Os mortos pertencentes a famílias nobres eram transportados em troncos de árvore escavados, ou quando plebeus, envoltos em esteiras e enterrados diante da casa mais importante do aglomerado, habitada pelo homem mais idoso da aldeia. Este ritual foi substituído pelo enterro dos mortos nos cemitérios, pelo menos nas cidades.
Actualmente, alguns destes rituais anímicos encontram-se em processo de extinção, uma vez que o catolicismo encontra-se, largamente, difundido.
São João Evangelista, 27/12/2024
Há 17 horas
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