Exortação Apostólica do Papa Francisco,
"A alegria do Evangelho"
ENCONTRO
O documento nasce
de uma reflexão sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã”,
portanto, sobre o anúncio do Evangelho hoje. Mas o Papa destaca que
tal anúncio só é possível quando surge de um encontro: “Não
me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao
centro do Evangelho: ‘Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma
grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma
Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo’”.
(n. 7). Esse é o “manancial da ação evangelizadora”, segundo o Papa Francisco.
“Se alguém acolheu esse amor que lhe devolve o sentido da vida, como pode
conter o desejo de comunicá-lo aos outros?” (n. 8).
Portanto, seja na
sua origem, seja também no seu desdobrar-se, a ação evangelizadora mantém seu
vigor nesse encontro: não se trata de uma “heroica tarefa pessoal”, ou seja,
solitária, mas sim de uma “obra de Deus”, um anúncio que nasce e se mantém como
encontro com esse grande “Outro”. “Jesus é ‘o primeiro e o maior
evangelizador’. Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus”
(n. 12). E Deus é sempre um “Outro” que nos surpreende, que se manifesta pela “liberdade
incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão
variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando
os nossos esquemas” (n. 22).
Por outro lado, o
anúncio do Evangelho se faz sempre no encontro com os diversos “outros”, pois,
de acordo com o papa, todo o povo de Deus anuncia o Evangelho. O papa
Francisco deseja uma “Igreja ‘em saída’”, que vá ao encontro dos diversos
“outros”, pois “ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado,
nem por suas próprias forças. Deus nos atrai, no respeito da complexa trama de
relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe” (n. 113).
Dentro dessa
trama de relações, três “outros” principais ganham seu destaque no horizonte
de Francisco expresso na Evangelii gaudium. Em primeiro
lugar, o pobre. Diz o papa: “Hoje e sempre, ‘os pobres são
os destinatários privilegiados do Evangelho’, e a evangelização dirigida
gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem
rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os
deixemos jamais sozinhos!” (n. 48). “Por isso – continua o papa, repetindo sua
frase já célebre –, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm
muito para nos ensinar” (n. 198). Embora nem sempre os cristãos conseguem manifestar
a beleza do Evangelho, “há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos
últimos, por aqueles que a sociedade descarta e joga fora” (n. 195). E mais: “É
necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é
um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no
centro do caminho da Igreja” (n. 198).
DIÁLOGO
Para Francisco,
o diálogo “é muito mais do que a comunicação de uma verdade. Realiza-se pelo
prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das palavras entre
aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas
que mutuamente se dão no diálogo” (n. 142). Por isso, em um anúncio “respeitoso
e amável” do Evangelho, o papa afirma que “o primeiro momento é um diálogo
pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas
esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que
enchem o coração. Só depois dessa conversa é que se pode apresentar-lhe a
Palavra” (n. 128).
Francisco também
destaca duas grandes modalidades de diálogo. Um primeiro diálogo necessário
é intraeclesial. Como exemplo concreto e até mesmo litúrgico, o
papa faz uma longa reflexão sobre a homilia (nn. 135-159), que é justamente uma
retomada do “diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o seu povo” (n.
137). Para o papa, a pregação de todo discípulo missionário deve partir
primeiramente da vivência pessoal de diálogo com o Senhor: “Quem quiser pregar,
deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na
sua vida concreta” (n. 150).
E também é
preciso preparação, pois “um pregador que não se prepara não é ‘espiritual’: é
desonesto e irresponsável quanto aos dons que recebeu” (n. 145). Essa
preparação começa na escuta. A “arte de escutar (...) é mais do que ouvir.
Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna
possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro
espiritual” (n. 171). Por isso, o pregador deve pôr-se à escuta do povo, para
descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. “Um pregador é um
contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo” (n. 154).
Outro diálogo
essencial é extraeclesial, pois “o compromisso evangelizador se
move por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias” (n 45). “Nos
diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura –
afirma Francisco –, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e
mostra ‘a beleza deste rosto pluriforme’” (n. 116). A cultura e os diferentes
povos, portanto, como um grande interlocutor da comunidade cristã, também “são
sujeitos coletivos ativos, agentes da evangelização” (n. 122).
Nesse sentido, a
diversidade cultural é um dom e “não ameaça a unidade da Igreja” (n. 117), pois
“uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (n. 118).
Por isso, Francisco critica aqueles que “sonham com uma doutrina monolítica
defendida sem nuances por todos”, pois a variedade “ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho”
(n. 40). “A expressão da verdade pode ser multiforme”, relembra Francisco,
citando João Paulo II. “Não podemos pretender que todos os povos dos
vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adotadas
pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não se
pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão de uma cultura” (n.
118). Daí a importância da evangelização entendida como inculturação: “Pode-se
dizer que ‘o povo se evangeliza continuamente a si mesmo’” (n. 122).
Em
suma, Francisco quer uma Igreja “em saída”, uma Igreja com as portas
abertas: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais
concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as portas abertas”
(n. 47), abertas aos diversos “outros” do mundo. E a verdadeira abertura,
segundo o papa, é “conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas,
com uma identidade clara e feliz, mas ‘disponível para compreender as do outro’
e ‘sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos’” (n. 251).
ANÚNCIO
Para além do
encontro e do diálogo, os cristãos têm o dever de anunciar o
Evangelho “sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas
como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um
banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas ‘por atração’”
(n. 14). Por outro lado, também, “todos devemos deixar que os outros nos
evangelizem constantemente” (n. 121), pois “a Igreja não evangeliza se não se
deixa continuamente evangelizar” (n. 174).
E evangelizar é
“tornar o Reino de Deus presente no mundo” (n. 176), é “amar a Deus, que reina no
mundo” (n. 180).
Nesse sentido, do
ponto de vista da evangelização, afirma Francisco, “não servem as
propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário,
nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que
transforme o coração” (n. 262). O anúncio do Evangelho leva ao “amor fraterno,
ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre” (n.
194), como Jesus ensinou. “Na medida em que Ele conseguir reinar
entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de
dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã
tendem a provocar consequências sociais” (n. 180).
O anúncio,
portanto, por assim dizer, deve ser encarnado, pois “as obras de amor ao
próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do
Espírito”. E, com relação ao agir exterior, “a misericórdia é a maior de todas
as virtudes” (n. 37).
Depois de
delinear, enfim, um horizonte bastante amplo da ação evangelizadora da Igreja,
o papa reconhece os limites e os riscos possíveis ao se tentar encarnar o
“estilo evangelizador” (n. 18) em todas as atividades da Igreja.
Mas Francisco não aceita desculpas esfarrapadas diante dos desafios
da evangelização: “A pastoral em chave missionária exige o abandono deste
cômodo critério pastoral: ‘sempre se fez assim’” (n. 33). “A nossa imperfeição
não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para
não nos acomodarmos na mediocridade e para continuar crescendo” (n. 121). “Não
digamos que hoje é mais difícil. É diferente” (n. 263).
Também é preciso
abandonar os sonhos com “planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem
traçados, típicos de generais derrotados” (n. 96). O importante é tentar, é o
que o papa parece dizer. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por
ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade
de se agarrar às próprias seguranças” (n. 49).
E a própria
história de Igreja “é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança,
de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso,
porque todo o trabalho é ‘suor do nosso rosto’” (n. 96). Por isso, a ação
evangelizadora, na sua tensão encontro-diálogo-anúncio, é tentativa: “O abrir-se
ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal” (n. 244).
Entretanto, “se eu consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já
justifica o dom da minha vida” (n. 274).
No fundo, o
verdadeiro sonho de Francisco é “com uma opção missionária capaz de transformar
tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a
estrutura eclesial se tornem um canal adequado para a evangelização do mundo
atual mais do que à auto preservação” (n. 27). Para isso, é preciso “acreditar
na força revolucionária da ternura e do afeto” (n. 288), como fez Maria,
“Mãe da Igreja evangelizadora”, que soube até “transformar um curral de animais
na casa de Jesus” (n. 286). Mas essa força não surge por causa dos nossos
esforços pessoais. Essa força vem do Espírito Santo: só ele pode “renovar,
sacudir, impelir a Igreja em uma decidida saída para fora de si mesma a fim de
evangelizar todos os povos” (n. 261).
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