CIDADE DO VATICANO,
Homilia do Papa Bento XVI na Missa
da Ceia do Senhor, março de 2008
Caros
irmãos e irmãs,
São João inicia seu relato sobre como Jesus lavou os pés de seus
discípulos com uma
linguagem particularmente solene, quase litúrgica. «Antes da
festa da Páscoa, Jesus, sabendo que havia chegado sua hora de passar deste
mundo ao Pai, depois de ter amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o
fim» (13, 1). É chegada a «hora» de Jesus, junto à qual seu agir era dirigido
desde o início. O que constitui o conteúdo desta hora, João o descreve com duas
palavras: passagem (metabainein, metabasis) e agape – amor. As duas palavras ilustram o evento; ambas descrevem a
Páscoa de Jesus: cruz e ressurreição, crucifixão como elevação, como «passagem»
à glória de Deus, como um «passar» do mundo ao Pai. Não é como se Jesus, depois
de uma breve visita ao mundo, agora simplesmente partisse e retornasse ao Pai. A
passagem é uma transformação. Ele leva consigo sua carne, o seu ser homem.
Sobre a Cruz, na doação de si mesmo. Ele é como que fundido e transformado em
um novo modo de ser, no qual agora está sempre com o Pai e contemporaneamente
com os homens. Transforma a Cruz, o ato da execução, em um ato de doação, de
amor até o fim. Com esta expressão, «até o fim», João refere-se em antecipação
à última palavra de Jesus sobre a Cruz: tudo foi levado
a término, «está consumado» (19, 30). Mediante seu amor, a Cruz
torna-se metabasis,
transformação do ser humano no ser partícipe da glória de Deus.
Nesta transformação, Ele envolve todos nós, atraindo-nos dentro da força
transformadora de seu amor, a ponto de, em nosso ser com Ele, nossa vida se
torna «passagem», transformação. Assim, recebemos a redenção – o ser partícipes
do amor eterno, uma condição à qual tendemos com toda a nossa existência.
Este processo essencial da hora de Jesus é representado no
lava-pés em uma espécie de
profético ato simbólico. Nele, Jesus evidencia com um gesto
concreto justamente isso que o grande hino cristológico da Carta aos Filipenses descreve como o conteúdo do mistério de Cristo. Jesus depõe as
vestes de sua glória, cinge-se com o «pano» da humanidade e se faz escravo.
Lava os pés sujos dos discípulos e os faz, assim, capazes de participar do
convívio divino ao qual Ele os convida. Ao lado das purificações cultuais e
externas, que purificam o homem ritualmente, deixando, contudo, assim como é,
subentende-se o banho novo: Ele nos torna puros mediante sua palavra e seu
amor, mediante o dom de si mesmo. «Vós já estais limpos pela palavra que vos
anunciei», dirá aos discípulos no discurso sobre a videira (Jo 15,3). Sempre de
novo nos lava com sua palavra. Sim, se acolhemos as palavras de Jesus em atitude
de meditação, de oração e de fé, elas desenvolvem em nós sua força
purificadora. Dia a dia somos como que recobertos de sujeira multiforme, de
palavras vazias, de preconceitos, de sabedoria reduzida e alterada; uma
múltipla semi-falsidade ou falsidade aberta se infiltra continuamente em nosso
íntimo. Tudo isso ofusca e contamina nossa alma, ameaça-nos com a incapacidade
para a verdade e para o bem. Se acolhermos as palavras de Jesus com coração atento,
elas se revelam verdadeira limpeza, purificação da alma, do homem interior. É a
isso que nos convida o Evangelho do lava-pés: deixar-nos sempre de novo lavar
por esta água pura, deixar-nos ser capazes da comunhão com Deus e com os
irmãos. Mas do lado de Jesus, depois do golpe da lança do soldado, não sai
somente água, mas também sangue (Jo 19, 34; cf 1 Jo 5, 6. 8). Jesus não só
falou, não nos deixou só palavras. Ele doa a si mesmo. Lava-nos com o poder
sagrado de seu sangue, isto é, com o seu doar-se «até o fim», até a Cruz. Sua palavra
é mais que um simples falar; é carne e sangue «para a vida do homem» (Jo 6,
51). Nos santos Sacramentos, o Senhor novamente se ajoelha diante de nossos pés
e nos purifica. Peçamos-lhe que do banho sagrado de seu amor sejamos sempre
mais profundamente penetrados e assim verdadeiramente purificados!
Se escutarmos o Evangelho com atenção, podemos perceber no
acontecimento do lava-pés dois aspectos diversos. A limpeza que Jesus faz a
seus discípulos é, antes de tudo,
simplesmente ação sua – o dom da pureza, da «capacidade para
Deus» oferecido a eles. Mas o dom torna-se um modelo, o mandamento de fazer a
mesma coisa uns aos outros. Os Padres qualificaram esta duplicidade de aspectos
do lava-pés com as palavras sacramentum
e exemplum. Sacramentum significa neste contexto não um dos sete sacramentos, mas o mistério
de Cristo em seu todo, da encarnação até a cruz e a ressurreição: este todo se
torna força restauradora e santificadora, a força transformadora para os
homens, torna-se nossa metabasis, nossa transformação em uma nova forma de ser, na abertura para
Deus e na comunhão com Ele. Mas este novo ser que Ele, sem nosso mérito,
simplesmente nos dá deve então transformar-se em nós na dinâmica de uma nova
vida. O conjunto de dom e exemplo, que encontramos no lava-pés, é
característico para a natureza do cristianismo em geral. O cristianismo, em
relação ao moralismo, é maior e uma coisa diversa. No início não está o nosso
agir, nossa capacidade moral. Cristianismo é, antes de tudo, dom: Deus se doa a
nós – não dá alguma coisa, mas a si mesmo. E isso ocorre não só no início, no
momento de nossa conversão. Ele permanece continuamente como Aquele que doa.
Sempre, e de novo, Ele nos oferece seus dons. Sempre nos precede. Por isso, o
ato central do ser cristão é a Eucaristia: a gratidão por ter sido gratificado,
a alegria pela vida nova que Ele nos dá.
Com isso, todavia, não nos tornamos destinatários passivos da
bondade divina. Deus nos gratifica como parceiros
pessoais e vivos. O amor doado é a dinâmica
do «amar juntos», quer ser em nós vida nova a partir de Deus. Assim compreendemos
a palavra que, no término do relato do lava-pés, Jesus diz a seus discípulos e
a todos nós: «Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros» (Jo 13,
34). O «mandamento novo» não consiste em uma norma nova e difícil, que até
então não existia. O mandamento novo consiste no amar junto com Aquele que nos
amou primeiro. Assim devemos compreender também o Sermão da Montanha. Isso não
significa que Jesus tinha então dado preceitos novos, que representavam exigências
de um humanismo mais sublime que o precedente. O Sermão da Montanha é um caminho
de prática no identificar-se com os sentimentos de Cristo (cf. Fil 2, 5), um
caminho de purificação interior que nos conduz a um viver com Ele. A novidade é
o dom que nos introduz na mentalidade de Cristo. Se considerarmos isto,
perceberemos quão longe estamos,
às vezes, com nossa vida, desta novidade do Novo Testamento;
quão pouco damos à humanidade o exemplo do amar em comunhão com seu amor. Assim nos
tornamos devedores da prova de credibilidade da verdade cristã, que se
demonstra no amor. Justamente por isso queremos tanto pedir ao Senhor que nos
torne, mediante sua purificação, maduros para o novo mandamento.
[Tradução do italiano: José Caetano. Revisão: Aline
Banchieri
© Copyright 2008 - Libreria Editrice Vaticana]
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