Cardeal Ravasi - Homilia em Fátima
(13.05. 2012)
Caros irmãos e irmãs,
há muitos anos, na minha juventude, estava também eu aqui no meio da grande
multidão dos peregrinos numa jornada luminosa como esta. Sinto-me também hoje
próximo de cada um de vós, com o olhar simples e espantado dos três pastorinhos
Lúcia, Francisco e Jacinta, dirigido para a Mãe do Senhor, na escuta da sua
voz. Ela envia-nos para a Palavra de Deus que ressoou agora nos nossos ouvidos
e nos nossos corações, nesta solene liturgia. Escolhemos para a nossa reflexão
um único símbolo que possa recolher na unidade a multiplicidade dos temas, dos
pensamentos, das imagens que as três passagens bíblicas nos ofereceram
[Apocalipse 21, 3-4, Romanos 12, 1-2, Mateus 12, 46-50].
É São Paulo que o propõe no fragmento da sua obra-prima teológica, a carta
aos Romanos, acabado de proclamar. O Apóstolo diz literalmente, em grego:
«Oferecei os vossos sómata, [os vossos] corpos a Deus». Eis o
grande símbolo que está em nós e ao nosso lado, antes, que somos nós próprios e
os nossos irmãos e irmãs. De facto, o corpo não é só um aglomerado de células,
um organismo biológico, mas é a sede da nossa alma, da consciência, da mente; é
a via para comunicar a alegria e o amor mas também a dor e o ódio; é «o templo
do Espírito Santo», como dirá aos cristãos de Corinto o mesmo Paulo (1 Cor 6,
19), mas é também um santuário que pode ser dessacralizado pelo pecado.
Infelizmente, na sociedade contemporânea, são os corpos sem alma a dominar,
tornando-se carne sem espírito, ora adorada ora desprezada. Tinham razão os
indígenas brasileiros que disseram ao escritor alemão Michael Ende: «nestes
últimos tempos, andamos para a frente tão rapidamente como progresso que temos
de parar um pouco para permitir às nossas almas atingir-nos». Ora bem, o corpo é
uma arquitetura admirável que tem sobretudo no rosto a via para se abrir ao
mundo e ao próximo. Procuremos, então, contemplar o rosto em alguns dos seus
traços essenciais.
O apóstolo Paulo, seguindo sempre as suas palavras gregas originais,
introduz logo a seguir o nous, isto é a mente que tem na fronte e
no cérebro a sua representação física. É o pensamento, a razão, o conhecimento.
Como dizia o grande crente, filósofo e cientista Pascal, é esta a nossa
dignidade mas também o nosso risco. Escrevia: «Dois são os excessos: excluir a
razão, admitir apenas a razão». E continuava: «Empenhar-se em pensar bem é este
o princípio da moral... Mas o último passo da razão é reconhecer que há uma
infinidade de coisas que a ultrapassam».
Na cultura contemporânea, que é muitas vezes fluida, inconsistente,
semelhante a uma neblina que não conhece pontos firmes morais e luzes de
verdade, o Apóstolo convida-nos a não nos «conformarmos com este mundo»,
navegando na superfície, à deriva, sem refletir e interrogar, sem procurar e
julgar. Paulo, ao contrário, exorta-nos a «transformar-nos», tende a mente fixa
no que «é bom, agradável a Deus e perfeito».
No rosto brilham os olhos: eles aparecem no texto fulgurante do
Apocalipse que escutamos. A cena é emocionante e João retira-a do profeta
Isaías: na cidade da esperança, a nova Jerusalém, Deus passará diante de todos
os homens e mulheres e, quando vir as lágrimas descer dos seus olhos, irá ele
mesmo enxugá-las. E das estradas daquela cidade logo fugirão todas as tristes
presenças que infelizmente neste momento se alojam ainda em Fátima, em todas as
cidades e vilas de Portugal, nas nações das quais provêm os peregrinos, nas
extremas terras desoladas da Ásia ou da África, nas metrópoles caóticas.
Estes terríveis habitantes chamam-se «Morte, Luto, Lamento, ânsia». Muitos
de nós viemos aqui com olhos velados de choro. Um antigo poeta grego, Ésquilo,
exclamava: «Infinita é a respiração da dor que sobe da terra ao céu. Existirá
um deus que a recolha?». A sua pergunta cética não tinha resposta: Nós, ao
contrário, apresentamos a nossa secreta bagagem de sofrimentos, de doenças, de
mal, de pecado, de solidão, de incompreensões a Maria para que a entregue ao
seu Filho. E Ele descerá ainda ao meio de nós para cancelar, certamente alguma
lágrima, mas sobretudo para trazer sobre si connosco este peso, caminhando ao
nosso lado pelas estradas da nossa vida quotidiana.
Muitas vezes cobrimos a cara com as mãos para esconder o choro ou a
vergonha ou para nos isolarmos na meditação. Ora bem, depois de mente e dos
olhos, as mãos são o terceiro sinal corporal que encontramos na Palavra de Deus
desta liturgia. É na cena evangélica que mostra, quase escondida entre a
multidão a escutar Jesus, também a sua mãe Maria. Cristo estende a mão para os
discípulos e define o vínculo íntimo que o une à sua mãe e a todos nós. É o
enlaçar das mãos. E logo a seguir afirma: «Quem faz a vontade do meu Pai que
está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe».
«Fazer», operar é o verbo típico das mãos. Não devemos ter medo de sujar as
mãos, ajudando os miseráveis da terra: para que servirá ter as mãos limpas, se
as temos no bolso? Um autor espiritual, Thomas Merton, afirmava: «A vida
escapa-nos das mãos, pode escapar como areia árida ou como semente fecunda de
obras justas». O aperto de mãos que nos daremos como sinal de paz seja a
promessa de fraternidade operativa, cumprindo «a vontade do Pai que está nos
céus». Fazendo assim, daremos a nossa mão ao próprio Deus e, como dizia o
escritor francês Julien Green, «quando se dá a mão a Deus, ele não larga
facilmente a presa».
O corpo, a mente, os olhos, as mãos: estes símbolos que estão em nós
próprios falem sempre aos nossos corações e orientem a nossa vida, sob o olhar
de Maria e do seu Filho Jesus. Lembremo-nos uns dos outros, unidos na mesma fé
e na comunhão de afetos, para além das distâncias e das dificuldades das
línguas. Esta noite, regressado a Roma, da minha janela que dá para a basílica
e a cúpula de São Pedro e para a residência do Papa Bento XVI, do qual sou
colaborador, confiarei a Deus o nosso encontro. Ele, que conhece cada rosto das
suas criaturas, vos abençoe e ponha ao vosso lado um «anjo da guarda à noite
transparente», como cantava de Fátima o vosso poeta Vitorino Nemésio. E, a cada
um de vós, Maria refaça a promessa dirigida à Lúcia: «Eu nunca te deixarei. O
meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá a Deus».
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